A 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho confirmou a possibilidade de dano existencial num caso em que ficou comprovado duração do trabalho superior a 12 horas por dia, com apenas duas folgas por mês:
RECURSO DE REVISTA DO RECLAMANTE. 1. DANO EXISTENCIAL. PRESTAÇÃO EXCESSIVA, CONTÍNUA E DESARRAZOADA DE HORAS EXTRAS, COM HORÁRIOS DIÁRIOS SUPERIORES A 12 HORAS, AO LONGO DE TODOS OS DIAS DA SEMANA, EXCETO DOIS DOMINGOS POR MÊS. DURAÇÃO DO TRABALHO PRÓPRIA DOS SÉCULOS XVIII E XIX NA EUROPA E DO BRASIL ATÉ O ADVENTO DO DIREITO DO TRABALHO E, MESMO ASSIM, NOS SEGMENTOS SOCIAIS E PROFISSIONAIS EM QUE ESTE PREVALECIA. CONDUTA EMPRESARIAL DESRESPEITOSA DOS PRINCÍPICIOS E NORMAS DO CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORÂNEO, DE CARÁTER HUMANISTA E SOCIAL, INSERTO NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988, ALÉM DOS PRINCÍPIOS E NORMAS DA ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, DESDE A SUA INSTITUIÇÃO EM 1919. PADRÃO DE GESTÃO DO PODER EMPREGATÍCIO INCOMPATÍVEL COM A ORDEM JURÍDICA CONSTITUCIONAL, COM A ORDEM JURÍDICO INTERNACIONAL, ALÉM DAS LEIS BRASILEIRAS ATUAIS. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL, IDENTIFICADO COMO DANO EXISTENCIAL. VIOLAÇÃO DE DIVERSOS FUNDAMENTOS E PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS, TAIS COMO A CIDADANIA, A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O VALOR SOCIAL DO TRABALHO A INVIOLABILIDADE FÍSICA E PSÍQUICA DA PESSOA HUMANA, O BEM-ESTAR INDIVIDUAL E SOCIAL DESSA PESSOA E A SEGURANÇA DA MESMA PESSOA. VIOLAÇÃO TAMBÉM DAS LIMITAÇÕES CONSTITUCIONAIS À LIVRE INICIATIVA, QUE NÃO É MAIS, NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 – AO CONTRÁRIO DO QUE FOI NAS CONSTITUIÇÕES DE 1824 E 1891 – UM DIREITO, UM PODER E UM VALOR DE NATUREZA ABSOLUTA. VIOLAÇÃO TAMBÉM DA CONSTITUIÇÃO DA OIT E DE SUAS NORMAS INTERNACIONAIS, QUE NÃO ADMITE A PESSOA HUMANA E O TRABALHO COMO SIMPLES MERCADORIAS, PASSÍVEIS DA MÁXIMA EXTRAÇÃO DE SUAS FORÇAS AO LONGO DOS DIAS E DAS SEMANAS. COMPROVAÇÃO DO DANO EXISTENCIAL COMO FATO NOTÓRIO, MANIFESTO, POIS A CIÊNCIA PRESCREVE QUE O INDIVÍDUO TEM DE DORMIR, POR DIA, NO MÍNIMO, ENTRE 07/08 HORAS, SABENDO-SE QUE TEM
DE AINDA QUE SE DESLOCAR NO PERÍMETRO ENTRE A SUA RESIDÊNCIA, O TRABALHO E O RETORNO À RESIDÊNCIA TODO DIA, RESTANDO-LHE, ASSIM, NO MÁXIMO, CINCO HORAS POR DIA, PARA O EXERCÍCIO DE SUA CIDADANIA, QUER EM SUA FAMÍLIA, QUER EM SUA COMUNIDADE, QUER COMO SER HUMANO PLENO. EXTENUAÇÃO DAS FORÇAS DA PESSOA HUMANA E AFRONTA AO PADRÃO MÍNIMO DE CIVILIDADE QUE A ORDEM JURÍDICA EXIGE DO PODER EMPREGATÍCIO NA TERCEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI, CONFORME NORMAS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS ESPECIFICADAS, NORMAS CONSTITUCIONAIS BRASILEIRAS AMPLAMENTE CONHECIDAS E NORMAS LEGAIS INSERIDAS ATÉ NO SENSO COMUM DA POPULAÇÃO. O excesso de jornada extraordinária, para muito além das duas horas previstas na Constituição e na CLT, cumprido de forma habitual e por longo período, atingindo, como no caso dos autos, uma exposição ao ambiente de trabalho de mais de 12 horas ao dia, durante todos os dias da semana, exceto dois domingos por mês (portanto, até 84 horas semanais em duas das semanas e 72 horas semanais nas duas semanas restantes) tipifica, sim, o dano existencial, por configurar manifesto comprometimento do tempo útil de disponibilidade que todo indivíduo livre, inclusive o empregado, ostenta para usufruir de suas atividades pessoais, familiares e sociais. A esse respeito é preciso compreender o sentido da ordem jurídica criada no País em cinco de outubro de 1988 (CF/88). É que a Constituição da República determinou a instauração, no Brasil, de um Estado Democrático de Direito (art. 1º da CF), composto, segundo a doutrina, de um tripé conceitual: a pessoa humana, com sua dignidade; a sociedade política, necessariamente democrática e inclusiva; e a sociedade civil, também necessariamente democrática e inclusiva (Constituição da República e Direitos Fundamentais – dignidade da pessoa humana, justiça social e Direito do Trabalho. 3ª ed. São Paulo: LTr, 2015, Capítulo II). Ora, a realização dos princípios constitucionais humanistas e sociais (inviolabilidade física e psíquica do indivíduo; bem-estar individual e social; segurança das pessoas humanas, ao invés de apenas da propriedade e das empresas, como no passado; valorização do trabalho e do emprego; justiça social; subordinação da propriedade à sua função social, entre outros princípios), a par do fundamento, valor e princípio da cidadania, tudo constitui, em seu conjunto, instrumento importante de garantia e cumprimento da centralidade da pessoa humana na vida socioeconômica e na ordem jurídica. Agregue-se que a Constituição da República enquadra também como direitos sociais – os quais são fundamentais, pois de titularidade da pessoa humana – a saúde, a educação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a proteção à maternidade e à infância, entre outros direitos. Some-se ainda a circunstância de a Constituição de 1988 conferir “especial proteção do Estado” à família (art. 226, caput), exigindo dos pais, homens e mulheres, presença constante e de qualidade perante esta comunidade de adultos, adolescentes e crianças (art. 227). Ora, a concretização de todos esses princípios, valores, fundamentos e objetivos constitucionais tem de ocorrer também no plano das relações humanas, sociais e econômicas, inclusive no âmbito do sistema produtivo, dentro da dinâmica da economia capitalista, segundo a Constituição da República Federativa do Brasil. Essa concretização tem de acontecer, na vida real, também segundo os princípios e normas internacionais da OIT, quer oriundas de sua Constituição de 1919, quer de sua segunda Constituição, editada na década de 1940, bem como da Declaração de Filadélfia, de 1944, todas repudiando, firmemente, o tratamento da pessoa humana e do trabalho como simples mercadoria pelo sistema econômico e qualquer empregador ou tomador de serviços. Dessa maneira, uma gestão empregatícia que submeta o indivíduo a reiterada e contínua jornada extenuante, que se concretize muito acima dos limites legais, (das 7h às 19:30h, com 1h de intervalo, durante todos os dias da semana, exceto dois domingos ao mês, conforme registrado pelo TRT), agravado por ser prestada em atividade perigosa, agride todos os princípios, valores e fundamentos constitucionais acima explicitados e a própria noção estruturante de Estado Democrático de Direito. Se não bastasse, essa jornada gravemente excessiva reduz acentuadamente e de modo injustificável, por longo período, o direito à razoável disponibilidade temporal inerente a todo indivíduo, direito que é assegurado pelos princípios constitucionais mencionados e pelas regras constitucionais e legais regentes da jornada de trabalho, sem contar o princípio, valor e fundamento constitucional da cidadania. Tal situação anômala deflagra, assim, o dano existencial, que consiste em lesão ao tempo razoável e proporcional, assegurado pela ordem jurídica, à pessoa humana do trabalhador, para que possa se dedicar às atividades individuais, familiares e sociais inerentes a todos os indivíduos, sem a sobrecarga horária desproporcional, desarrazoada e ilegal, de intensidade repetida e contínua, em decorrência do contrato de trabalho mantido com o empregador. Logo, configurada essa situação no caso dos autos, conforme amplamente exposto, não há dúvida sobre a necessidade de reparação do dano moral existencial sofrido, devendo serem condenadas as Reclamadas ao pagamento de uma indenização. (TST-RR-1945-33.2014.5.09.0009, 3ª Turma, rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, Julgado em 9/3/2022.)
A primeira impressão sobre o julgado é que foi apresentada uma ementa bastante analítica, o que se justifica porque esse precedente pode muito bem se transformar em um leading case – ressalte-se que os precedentes invocados na fundamentação são apenas da 2ª, da própria 3ª e da 6ª Turmas do TST, de modo que a matéria ainda parece estar longe de pacificada no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho.
Além disso, mesmo na ementa a argumentação em favor da caracterização do dano existencial é bastante consistente, abrangente e muito bem estruturada, embora o valor fixado a título de dano moral no dispositivo do acórdão (R$ 10 mil) pareça até módico diante do esforço argumentativo empreendido:
Decisão: refeito o “quorum” e o relatório, à unanimidade: I – conhecer do recurso de revista do Reclamante, quanto aos temas “dano existencial. prestação excessiva, contínua e desarrazoada de horas extras. indenização por dano moral” e “intervalo interjornada”, por violação aos arts. 5º. X, CF, e 66 e 67 da CLT, respectivamente; II – no mérito, dar-lhe provimento para condenar as Reclamadas (a segunda Ré, de forma subsidiária): a) ao pagamento de indenização por dano moral no importe de R$ 10.000,00 (dez mil reais), consoante fundamentação constante no voto. Juros de mora e correção monetária nos termos da Súmula 439/TST; b) ao pagamento de horas extras decorrentes da concessão irregular dos intervalos previstos nos arts. 66 e 67 da CLT, nos dois domingos do mês laborados, conforme consignado pelo TRT, com adicional e reflexos legais e/ou postulados, deduzidos os valores pagos ao mesmo título, tudo conforme se apurar em liquidação de sentença. O cálculo levará em consideração apenas a quantidade de horas suprimidas, e não todo o período intervalar, nos moldes da OJ 355/SBDI-I/TST. Mantido o valor da condenação.
A fundamentação da decisão é relativamente escassa a respeito dos critérios para a fixação do valor da indenização, sendo que apenas um dos precedentes citados havia fixado indenização idêntica, tampouco com motivação mais profunda a esse respeito:
Quanto ao valor da indenização, como se sabe, não há na legislação pátria delineamento do quantum a ser fixado a título de dano moral. Caberá ao Juiz fixá-lo, equitativamente, sem se afastar da máxima cautela e sopesando todo o conjunto probatório constante dos autos. A lacuna legislativa na seara laboral quanto aos critérios para fixação leva o julgador a lançar mão do princípio da proporcionalidade, associado a seu corolário, a diretriz da razoabilidade, pelo qual se estabelece a relação de equivalência entre a gravidade da lesão e o valor monetário da indenização imposta, de modo que possa propiciar a certeza de que o ato ofensor não fique impune e servir de desestímulo a práticas inadequadas aos parâmetros da lei. Assim, levando-se em conta os valores fixados, nesta Corte, a título de dano morais, com análise caso a caso, considerando a intensidade do sofrimento da vítima, a gravidade da lesão, o grau de culpa do ofensor e a sua condição econômica, o não enriquecimento indevido das ofendidas e o caráter pedagógico da medida, arbitra-se em R$ 10.000,00 (dez mil reais) a indenização devida a título de danos morais ao Reclamante.
Quiçá, a discrepância entre a contundência e a ênfase da fundamentação, e a importância dos vários direitos invocados como protegidos, com a consequência prática do valor da indenização fixada decorra da circunstância de que o arbitramento da jornada se deu a partir de prova exclusivamente testemunhal, sabidamente frágil, ou até da circunstância de que já existe um adicional para a remuneração das várias horas extras arbitradas.
No primeiro caso, da fragilidade da prova testemunhal, seria de se indagar até que ponto a prova exclusivamente testemunhal poderia justificar condenações superiores ao limite do já revogado art. 227 do Código Civil (até 10 salários mínimos):
Art. 227. Salvo os casos expressos, a prova exclusivamente testemunhal só se admite nos negócios jurídicos cujo valor não ultrapasse o décuplo do maior salário mínimo vigente no País ao tempo em que foram celebrados.
Já em relação ao segundo caso, da remuneração com adicional de uma quantidade já bastante expressiva de horas extras, é o próprio direito à indenização que aparenta ficar duplicado.
Em qualquer caso, trata-se de uma importante reflexão sobre os rumos do Direito do Trabalho no Brasil.