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Durante a pandemia de coronavírus, algumas empresas despedem seus empregados e tentam transferir ao governo a responsabilidade pelo pagamento das parcelas rescisórias.

Essas empresas invocam o fato do príncipe, previsto pelo art. 486 da CLT (a redação é de 1951):

Art. 486. No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável.

Naquela época, ainda não havia o regime do FGTS, que substitui e é incompatível com a indenização por antiguidade mencionada no art. 486 mas prevista pelo art. 478 da CLT:

Art. 478 – A indenização devida pela rescisão de contrato por prazo indeterminado será de 1 (um) mês de remuneração por ano de serviço efetivo, ou por ano e fração igual ou superior a 6 (seis) meses.

Nesse mesmo sentido, a Súmula 98 do TST:

FGTS. INDENIZAÇÃO. EQUIVALÊNCIA. COMPATIBILIDADE.

I – A equivalência entre os regimes do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço e da estabilidade prevista na CLT é meramente jurídica e não econômica, sendo indevidos valores a título de reposição de diferenças.

II – A estabilidade contratual ou a derivada de regulamento de empresa são compatíveis com o regime do FGTS. Diversamente ocorre com a estabilidade legal (decenal, art. 492 da CLT), que é renunciada com a opção pelo FGTS.

O regime do FGTS foi criado em 1966 e universalizado em 1988 (no art. 7º, III, da Constituição), de modo que não existe mais nenhum empregado com direito à indenização por antiguidade de que trata o art. 478 da CLT.

Ou o empregado adquiriu direito à estabilidade decenal (art. 492 da CLT), e já não tem mais direito à indenização por antiguidade, ou está sujeito ao regime do FGTS, e nunca teve direito à indenização por antiguidade.

Como visto, embora jamais revogado, o art. 478 da CLT caiu em desuso.

Inevitavelmente, o art. 486 da CLT, que remete à indenização do art. 478 da CLT, também perdeu eficácia.

As “verbas rescisórias” que são objeto do art. 477 da CLT não se confundem com a indenização por antiguidade de que trata o art. 478 da CLT e que é mencionada no art. 486 da CLT.

Portanto, o empregador não tem o direito de invocar o art. 486 da CLT para transferir ao governo municipal, estadual ou federal a responsabilidade pelo pagamento das verbas rescisórias.

Nesse sentido, a sentença do processo n.º 0020498-47.2020.5.04.0013:

A despedida sem justa causa é incontroversa, conforme constou no TRCT (ID 1e9cb1a) e confirmou a primeira ré (…) na defesa (ID 3192e68).
A primeira ré, empregadora, confessa o inadimplemento das verbas rescisórias, mas considera ser dever do “Município de Porto Alegre (Governo do Estado de RS) arcar com o
pagamento da integralidade das verbas decorrentes da rescisão do contrato de trabalho pleiteadas na presente ação trabalhista”.
A regra do art. 486 da CLT trata da indenização por  antiguidade do art. 478 da CLT, mas essa indenização não é aplicável à autora, pois é incompatível com o regime do FGTS.
Portanto, não há falar em fato do príncipe como forma de excluir a responsabilidade da empregadora pelo pagamento das verbas rescisórias devidas pela dispensa da autora, tampouco em transferir aos cofres públicos a responsabilidade por esse pagamento.

Na Live realizada em 24/09/2020 (o vídeo está disponível na área gratuita da E-scola Trabalhista), com a participação dos juízes Jorge Alberto Araújo e Max Carrion Brueckner, da 5ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, abordamos o Fato do Príncipe e a Sentença Parcial de Mérito na Justiça do Trabalho.

Guilherme da Rocha Zambrano

Guilherme da Rocha Zambrano

Juiz da 13ª Vara do Trabalho de Porto Alegre/RS e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Criador e Professor da E-scola Trabalhista e autor do livro Cálculo Trabalhista Simplificado.