Patrimonialismo e Cartórios no Antigo Regime

Propriedade, hereditariedade e venalidade dos Ofícios de Justiça nas Idades Média e Moderna em Portugal e no Brasil, especialmente o Ofício de Tabelião de Notas ou de Serviços Notariais. Primeira parte do estudo sobre Concurso Público de Cartório no Brasil.

Guilherme da Rocha Zambrano

Introdução

Este trabalho faz parte de um projeto maior, mas que ainda não está pronto e que ficou grande demais para ser publicado como um simples artigo na internet.

Então, para contribuir com o debate sobre a ADI 6.958-DF, que está prestes a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal, pareceu pertinente publicar a parte do projeto que já está pronta, dividida conforme os avanços e os retrocessos do Patrimonialismo e da Republicanização dos Cartórios na tradição e experiência jurídica luso-brasileira.

A "propriedade" de Ofícios Públicos, especialmente da Fazenda e da Justiça, não era exclusiva dos “titulares” dos Cartórios ou Serviços Notariais e Registrais.

Inclusive, ao contrário do que muitos desonestos dizem, nem o Concurso Público e nem a “venalidade” de ofícios são “jabuticabas” (supostos costumes absurdos que só existiriam no Brasil).

A origem dos concursos públicos pode ser identificada nos exames imperiais realizados na China há milhares de anos, que, tal como os concursos públicos, eram provas de conhecimentos realizadas com alguma frequência para selecionar quais pessoas exerceriam funções típicas da burocracia estatal, tanto para ingresso quanto para promoção ou destituição.

O concurso público também é o método de seleção usado em vários países supostamente mais desenvolvidos, inclusive para a seleção de notários e de registradores, mas há peculiaridades locais como um tempo de “estágio” ou de experiência prévia em oficinas notariais ou a utilização de um mesmo exame para juízes, advogados e notários.

Com esse método impessoal de seleção pelo mérito, podem ser satisfeitas as aspirações de prestígio e de ascensão social da população, cujos membros mais destacados podem integrar a ordem vigente, é qualificada a administração estatal e é evitado o exercício do poder estatal por pessoas ineptas, que poderiam ser escolhidas por eventual favoritismo ou gratidão do governante da ocasião ou, pior ainda, somente pelos laços sanguíneos com algum oligarca.

No trabalho intitulado “Órgãos da Fé Pública”, João Mendes de Almeida Júnior informa que teria sido somente na época da Revolução Francesa que a venalidade dos ofícios foi abolida em França.

Mesmo assim, Georges Ripert, em "A Regra Moral nas Obrigações Civis”, descreve casos de cedência de cargos públicos julgados pela Corte de Cassação francesa em pleno século XX.

Não é exclusividade brasileira, tampouco portuguesa, portanto, a aspiração de um “direito adquirido” e/ou “hereditário” à “serventia” (palavra essa cujo significado é equivalente ao de usufruto e que deve ser abolida do vocabulário jurídico de quem preza pelas profissões notarial e registral).

A Propriedade de Ofícios Públicos na Idade Média tardia

O problema da propriedade dos Ofícios Públicos era bem mais profundo do que aparenta, pois não era somente do ponto de vista de quem exercia o ofício que havia essa aspiração à propriedade, mas também do ponto de vista de quem o “delegava”.

Dentre as tradições medievais que subsistiram durante a centralização do Poder Real em direção ao Absolutismo, havia o “Poder de Mero e Misto Império”, reconhecido como pré-existente ou que foi expressamente concedido pelo Poder Real em favor de “Senhores de Terra”, dentre os quais se destacam os “Grandes” do reino, a Igreja, as Ordens Militares e Religiosas, os Concelhos (ou cidades) e até os “Capitães do Brasil”, donatários das “Capitanias Hereditárias”.

Esse “Poder de Mero e Misto Império” permitia a quem detinha tal privilégio administrar a Justiça, inclusive a nomeação para os Ofícios de Justiça, dentre os quais estava o de Tabelião de Notas.

Ou seja, embora seja verdade que os “Oficiais” tinham a expectativa de propriedade dos “Ofícios” em que foram investidos, inclusive os transmitindo para seus herdeiros depois da morte, a verdade muito pouco enfatizada é que o verdadeiro proprietário do “Ofício” não era o “Oficial” e nem a sua família, mas o “Senhor de Terras” que o “delegou” para o “Oficial”.

Como visto, o problema da propriedade dos ofícios tinha uma natureza dúplice, até mesmo prismática, tanto do ponto de vista de “quem delega” (o Rei ou o Senhor de Terras) quanto de “quem é delegado” (o Senhor de Terras ou o Oficial).

Os Tabeliães de Portugal surgiram bem cedo, talvez antes do século XIII, pois, conforme o estudo de Ricardo Seabra, “Eduardo Borges Nunes sustenta o surgimento do notariado público no reinado de D. Afonso II (1211‐1222). Mais recentemente, Saúl António Gomes sugere a possibilidade de o notariado medieval português preexistir ao reinado de O Gordo, ocupando as estruturas institucionais eclesiásticas um papel pioneiro na organização e afirmação do reino. Deriva deste princípio ordenador o fato de, no primeiro terço de Duzentos, alguns tabeliães adotarem uma identificação com inscrição de número ordinal imediatamente a seguir ao nome “primus tabellio”, a qual não indica a anterioridade temporal no exercício do cargo, mas a orgânica de um serviço e de uma distribuição espacial dos notários, bem como o pessoal auxiliar deles dependente, de forma interdependente e hierarquizada, sendo essa hierarquização relativa à responsabilidade de um serviço de escrita autorizado e juridicamente válido”.

Maria Helena da Cruz Coelho, da Universidade de Coimbra, informa que era socialmente muito desejável o casamento com um Tabelião, que era considerado um membro da pequena nobreza urbana, e relembra os versos do Cancioneiro Geral, de Garcia Resende: “ca molher do escrivam, cuyda que he húa raynha”.

De fato, em uma sociedade majoritariamente analfabeta, a pessoa encarregada de redigir os instrumentos das principais transações comerciais ou civis não apenas era bem remunerada pelo exercício dessa função como também tomava conhecimento dos preços correntes e das melhores oportunidades de negócio de sua época, informações essas que eram úteis não apenas ao próprio Tabelião, para a administração de seu patrimônio e interesses, mas também para o poder local (por exemplo, quais pessoas tinham quais recursos ou interesses).

Nesse contexto, em que o Poder Real buscava centralizar o Poder Estatal pela supressão das relações de suserania e vassalagem intermediárias, baseadas na propriedade da terra (v.g., entre um Duque e um Conde ou um Conde e um Barão), o poder de criar e de delegar o Ofício de Tabelião era prezado e reivindicado pelos “Senhores de Terra”, pois permitia a criação de relações de clientelismo modernizadas, urbanas e que envolviam a distribuição de “Ofícios” públicos, em vez de terras.

Apesar do pioneirismo de Portugal como “estado-nação” e da sua evolução em direção ao Absolutismo, a sua situação de Estado “destacado” do Reino de Castela (“sucessor” dos Reinos de Astúrias, Galícia e Leão), ao seu lado, implica que alguns “Senhores de Terra” portugueses tinham privilégios e costumes anteriores à própria existência de Portugal e, sem o apoio deles, havia um risco permanente de retorno ao “status quo ante” (a reabsorção de Portugal pelo vizinho maior, Reino de Castela, que realmente veio a acontecer durante a União Ibérica e ficou perto de acontecer em outras oportunidades).

Além disso, especialmente durante as crises dinásticas (quando substituída a Dinastia de Borgonha pela de Avis, depois desta pela Casa de Áustria e da última pela de Bragança) o apoio dos “Grandes” foi ainda mais necessário para consolidar o novo Governo e, em troca de apoio, foram feitas várias “doações, mercês e privilégios” tanto aos “Concelhos” quanto aos “Grandes” que apoiaram os novos Reis.

Mesmo com a “Lei Mental” (que impôs uma “reserva mental” às mercês feitas do Rei), que permitiu a revogação de doações insustentáveis que foram feitas durante as crises dinásticas (que abrangiam até isenções de impostos às maiores cidades ou Concelhos), os privilégios senhoriais de alguns “Grandes” persistiram quase até o final do Antigo Regime, nas vésperas do século XIX.

Como dito, essas “doações, mercês e privilégios” eram dotadas do “Poder de Mero e Misto Império”, que incluía a Administração da Justiça e a nomeação das pessoas encarregadas de cada um dos “ofícios da justiça”, inclusive os Juízes Ordinários, Escrivães, “Tabeliães do Judicial” e “Tabeliães de Notas”.

Para que se tenha uma ideia da pulverização do “Poder de Mero e Misto Império”, Mafalda Soares da Cunha informa que mais da metade (até 70%) das jurisdições não estavam sob o domínio direto do Poder Real e Centralizado: “Quanto à relevância do tema, não valerá a pena insistir na importância de conhecer melhor as práticas políticas dos donatários. Como é sabido, em Portugal na primeira metade do século XVI (1527-1532), cerca de metade das câmaras do país estava sob a jurisdição senhorial (leiga e eclesiástica) (54,6%); em 1640, esse valor ainda cresceu um pouco (57,6%). Todavia, se incluirmos neste cômputo, e para 1527-1532, os senhorios das ordens militares que só incompletamente estavam sob dependência da Coroa, o valor crescerá para cerca de 70%”.

Ou seja, a nomeação de Tabeliães só era prerrogativa Real em menos da metade e quiçá até em apenas menos de um terço do território português, inclusive no Brasil, onde o regime de Capitanias Hereditárias era uma “mercê” em tudo semelhante aos “Senhorios de Terra”, inclusive com a delegação do “Poder de Mero e Misto Império”.

Portanto, não seria surpreendente se alguns dos Ofícios Notariais até hoje existentes no Brasil tivessem sido criados por algum “Capitão do Brasil”.

O Primeiro Tabelionato de Notas do Rio de Janeiro, por exemplo, foi criado em 1565 (vide o Portal Justiça Aberta, do Conselho Nacional de Justiça - CNJ), embora em uma Capitania Geral ou Real (que era subordinada diretamente ao Rei), mas as últimas Capitanias Hereditárias só foram readquiridas pela Coroa Portuguesa, para se tornarem Capitanias Gerais, em meados do século XVIII (a última delas em 1763).

No caso dos Ofícios criados pelos “Donatários”, o controle da data de criação do Ofício e da pessoa encarregada do seu exercício, se havia, seria feito pela Chancelaria do Donatário (caso fosse seguido o exemplo dos “Grandes” de Portugal, que tinham a sua própria Chancelaria) ou, quando muito, pelos registros domésticos do próprio “Capitão do Brasil”.

Assim, quando muito, o “Oficial” teria sua nomeação aprovada pela Chancelaria Real, em Lisboa, mas isso seria somente no mundo ideal, pois, na prática, havia graves lacunas no controle da titularidade e sucessão nos Ofícios até mesmo na Capitania Real, ou Geral, do Rio de Janeiro, como atesta o trabalho de Deoclécio Leite de Macedo: “No Brasil, com a divisão em capitanias hereditárias, era dado aos donatários, pelos forais, o poder de criar vilas e seus ofícios de governança, inclusive os tabeliães, como se vê no foral de Duarte Coelho, para Pernambuco, e no de Martim Afonso de Sousa, para São Vicente. Com o fracasso das capitanias hereditárias e a unificação do governo do Brasil em um governo geral, foram os direitos modificados. No foral dado a Tomé de Sousa, em 17 de dezembro de 1548, não aparecem os direitos de provimento dos ofícios, mas, dos usos posteriores e de algumas cartas, podemos inferir que o governador-geral tinha poderes para fazer tabeliães interinos, por um ano, devendo o agraciado recorrer ao rei para alcançar a confirmação e receber carta, assinada por Sua Majestade e passada pela Chancelaria Real. A carta de Francisco Bicudo, de novembro de 1554, diz que ele já servia, por comissão de Tomé de Sousa, no tempo capitão e governador-geral. Também a carta de Aleixo Lucas, de 20 de março de 1559, reza que ele apresentou a carta de Gomes de Aguiar, que tinha os ditos ofícios, a qual lhe fora passada por Tomé de Sousa quando governador-geral das partes do Brasil. Com o tempo, pelo costume dos reis de recompensarem, nos filhos dos oficiais, os serviços dos pais que bem servissem os ofícios sem erro nem culpa, introduziu-se, pela chamada lei consuetudinária, o uso de se conceder a propriedade hereditária dos ofícios de Justiça e Fazenda. Desse costume muito se valeram as viúvas e filhas dos proprietários falecidos, para se beneficiarem dos rendimentos dos ofícios para sua subsistência, dote de casamento ou entrada em convento.

Mas não é somente de uma possível origem particular (não estatal e nem Real) da delegação que resulta a dificuldade de determinar a quantidade e a data de criação de muitos ofícios.

A verdade é que os ofícios não eram explicitamente conferidos a título de “propriedade”, pois era bem mais comum a concessão precária, por três anos, embora a concessão costumasse ser renovada se o “titular” mostrasse gratidão e se comportasse de modo adequado à expectativa de quem lhe “delegou” o exercício da atividade.

Além disso, mesmo com a aparente precariedade, era costumeira a delegação dos ofícios ao filho do titular anterior, a concessão do ofício ao genro do titular anterior (como uma espécie de dote para o casamento com a filha do titular anterior) e até que a “delegação” fosse acompanhada do “encargo” de sustentar a viúva ou de garantir a entrada da filha do titular anterior no convento, enquanto elas vivessem.

Ou seja, a concessão precária era na prática uma propriedade, que tinha valor de mercado e, além de vendida, muitas vezes era arrendada ou até trocada por outra de valor “equivalente”, nos casos em que por algum motivo a família ficava impedida de exercer pessoalmente o Ofício.

A propósito, merecem destaque os “Alvarás de Promessa” do Duque de Bragança (ainda antes de se tornar a casa reinante) no final do século XVI, por exemplo: “Em 1584, André Rodrigues e sua mulher Isabel Gomes foram nomeados pela Casa de Bragança no ofício de meirinho da vila de Monforte, por três anos. Em consequência abdicaram do direito de processar a fazenda do duque. A acção judicial intentada pelo casal fundava-se nos direitos que Isabel Gomes alegava ter sobre os ofícios de alcaide das sacas de Chaves, que fora do seu pai, e o de tabelião da vila de Montalegre do qual Custódio Lopes, primeiro marido da mesma, recebera um alvará de promessa do duque. Tais factos significam por um lado que a casa de Bragança reconhecia que Isabel Gomes dispunha de direitos à herança dos ofícios do pai e do primeiro marido e que, por isso, estava disposta a compensá-la. Eram ofícios patrimonializados, portanto. Por outro lado revelam que o direito a herdar esses ofícios podia ser objetivado num qualquer outro ofício da dada da Casa. Esta evidência aponta para a possibilidade de a casa jogar com o conjunto de ofícios que tinha disponíveis nas suas terras para satisfazer as obrigações para com os seus vassalos. Note-se que os dois ofícios em causa se situavam em terras transmontanas e que o de meirinho em Monforte, no Alentejo. Mas mais ainda. O ofício foi explicitamente concedido pelo prazo de três anos, ou seja a título precário. Talvez, presume-se, porque a casa não se queria comprometer de forma definitiva com esta nomeação, resguardando a possibilidade de lhes conceder um qualquer outro ofício, que fosse mais conveniente para as duas partes. Tal não aconteceu, porque em 1597 e em 1603 André Rodrigues ainda estava “encarregado” deste ofício de meirinho e nas duas ocasiões concedeu-se-lhe um novo prolongamento de três anos. Ora esta última informação reforça a ideia já enunciada de as concessões precárias de ofícios terem como intenção estabelecer limites aos direitos dos oficiais aos ofícios, libertando a casa das obrigações jurídicas que os direitos em propriedade implicavam. Mas, como também já se disse, permitindo que o governo ducal obtivesse novos proventos pela cobrança dos direitos de chancelaria anexos à emissão das renovações das cartas de ofício.”

Como visto, por mais precária que fosse a “delegação” (formalmente), até mesmo a futura Casa Real (então ainda Ducal) se sentia obrigada ao cumprimento da promessa de propriedade de um ofício, pois aquele costume estava arraigado tanto entre quem “delegava” quanto em quem recebia a “delegação”.

Abstraindo-se o anacronismo da análise, não pode deixar de ser destacada a pessoalidade da relação de clientelismo, que, embora não fosse personalíssima ou intuitu personae (pois era transferida para a geração seguinte, tanto ativa quanto passivamente), era estabelecida apenas entre o delegante e o delegatário do Ofício, e não com o Rei, a República, o Estado ou a Ordem Jurídica.

Além disso, o direito de cobrar pela renovação das Cartas de Ofício acabava sendo uma importante fonte de renda para o “Senhor de Terras”, uma espécie de foro “trienal” ou “solário” que era cobrado pela renovação da delegação (numa analogia com a enfiteuse ou a superfície), o que novamente demonstra que o verdadeiro proprietário do Ofício era quem delegava o “domínio útil” ou a “superfície” e não quem “usufruía” dele (ainda que por um largo período).

Em um trabalho sobre a quantia cobrada pela “Carta do Ofício” de “Provedor” (que era um Magistrado enviado para o interior para fiscalizar e fazer cumprir as Ordenações e demais Leis), podemos ter uma ideia mais clara da importância dessa cobrança, equivalente a praticamente um terço do salário que seria recebido nos três anos de duração da “delegação”: “Por fim, é preciso não esquecer os salários «mesquinhos e insuficientes» que, como observa Borges Carneiro, eram pagos aos magistrados territoriais, de acordo com a lei de 1750, em finais do Antigo Regime, salários que se mantiveram, pelo menos, até 1820. Vejamos, a título de exemplo, o caso dos provedores - sabendo nós que os corregedores se debatiam com idêntica situação - nas vésperas da revolução liberaI. Este magistrado, anualmente, ganhava 106.666 réis, o que somava, no seu mandato trienal, a verba de 319.998 réis. Ora, deste montante, os provedores, em inícios do século XIX, descontavam 28.520 réis dos novos direitos, carta e portaria interna; 31.999 réis de décima; 17.080 réis de emolumentos e selos da carta e portaria; e, finalmente, 31.999 réis de rebate de metade do ordenado em papel, a 20%, o que tudo somava 109.598 réis. Isto é, o salário anual de um provedor não era suficiente para cobrir todos os descontos que lhe eram feitos pelo exercício do seu mandato trienal.

Ou seja, o valor cobrado na Chancelaria Real era pouco maior do que o primeiro ano de remuneração recebida pelos “Magistrados”, que tinham essa quantia descontada do seu primeiro salário.

O resultado dessa cobrança abusiva que tinha início com o Rei (ou “Senhor de Terras” que “delegou” o Ofício) era o repasse adiante da extorsão aos oficiais locais (como Juízes Ordinários e de Vintena), que, por sua vez, providenciavam seu ressarcimento com extorsões à população, por meio de “coimas” (multas) indevidas que eram impostas por infrações inexistentes às posturas expedidas pelas Câmaras de Vereadores, segundo relatos de vários Corregedores: “Nas eleições para a governança das vilas, quando tais cargos obrigavam a grandes despesas, os ricos, fundamentados nos privilégios que detinham, logo se escusavam, obrigando os mais pobres a servir os cargos municipais e a gastar o que não podiam. E o mesmo acontecia nas eleições dos louvados e cobradores dos tributos, nas restantes eleições que se faziam nas câmaras, e nas nomeações dos repartidores ou lançadores da décima e da sisa. Nas correições dos vereadores e almotacés, as multas e condenações cobradas arbitrariamente, as fintas dos concelhos, os encargos das coudelarias, as prisões e violências que se seguiam a tudo isto, constituíam outros tantos modos de onerar e ‘vexar o povo lavrador’”; “Indica a execução arbitrária das posturas entregue a um rendeiro; o grande número de coimas, a maior parte falsas; as inúmeras licenças que, obrigatoriamente, se tiravam na câmara, desde limpar as árvores, a ter lenha à porta, fazer uma estrumeira, a concertarem e levantarem valados, muros e tapumes, até à entrega, por cada fogo, de 5 cabeças de pardais ao escrivão da câmara e conclui que ‘um vassalo pobre, mas útil, pela sua vida sempre ocupada, paga todos os anos três, quatro, e seis mil réis de custas, licenças e condenações, quando não chega a pagar 200 réis de contribuições régias. Isto parece incrível, mas é tudo uma pura verdade de que eu tenho sido muitas vezes testemunha, e em circunstâncias, que me têm enternecido’.

Como visto, os abusos dos níveis mais altos eram repassados até os níveis mais baixos, que simplesmente não tinham mais como ou de quem se ressarcir.

Assim, a venalidade dos Ofícios era um problema multifacetado e até prismático, pois (i) a “outorga da delegação” não era exclusividade do Poder Real e Centralizado e era até minoritário em relação aos “Senhores de Terra”, em seu conjunto; (ii) os Senhores de Terra retiravam grande utilidade da nomeação para os ofícios de justiça nas suas terras, pois com eles podiam recompensar serviços prestados, cultivar relações de clientela com seus “apadrinhados” e ainda obter uma renda periódica pela renovação das Cartas de Ofício; (iii) a renovação da “serventia” ou usufruto do “ofício” delegado era uma aspiração comum daqueles que recebiam a “delegação”.

Ou seja, enquanto o Poder Real e Centralizado tentava se equilibrar entre o apoio de que dependia para se manter no Governo (que exigia o respeito aos privilégios a que os “Grandes” estavam acostumados) e a sua necessidade de controlar o exercício dos “Ofícios” Públicos para avançar em direção à centralização do Poder e ao Absolutismo, os oficiais “delegados” e as suas famílias queriam preservar a titularidade do Ofício que lhes garantia renda e destaque social e os que tinham o poder de delegar ofícios queriam preservar esse privilégio, que incluía a cobrança pela renovação das delegações.

Basicamente, havia tensões entre o Poder Real e os “Senhores de Terra” quanto a quem tinha o poder de delegar, havia tensões entre o Delegante e o Delegado a respeito da amplitude do direito conferido pela delegação (definitivo ou precário) e também havia interesses pecuniários na renovação periódica da delegação e na obtenção de renda para sustento do Oficial e de sua família.

A Centralização do Poder no Antigo Regime

Há quase 500 anos as Ordenações Filipinas (L. 1, T. LXXX, § 20) já combatiam a venda de ofícios sem uma especial licença - ou seja, embora aceita, tanto a “venda” do ofício quanto o seu comprador precisavam ser aprovados pelo Poder Real.

Tal aprovação incluía um exame de aptidão perante os Desembargadores do Paço (exame esse que ainda não era um Concurso Público, apenas um controle da capacidade de exercer o “Ofício”), conforme a Lei de 27/07/1582: “Que todos os Tabelliães e Scrivães, a que houverem de passar Cartas dos Officios, per qualquer modo que seja, se examinem pelo ditos Desembargadores do Paço, fazendo-os ler e screver perante si; e se Virem, que bem screvem e bem lêm, e que são pertencentes para os Officios, lhes dêm sua Cartas, e fique o sinal publico doTabellião na Chancellaria, e assine com elle huma testemunha, como elle he o próprio, que pedio o Officio e estas Cartas fará o Scrivão da Chancellaria.”

As Ordenações buscavam afirmar e consolidar o Poder e a Jurisdição Real sobre a Igreja, proibindo-se aos Tabeliães de Notas o uso de símbolos eclesiásticos como “coroa aberta, grande, nem pequena” (L. I, T. LXXX, § 4º) e a redação de contratos “em que as partes se obriguem por juramento ou boa fé” (L. I, T. LXXVlll, § 13), assim como já era exigida a transcrição verbum ad verbum da certidão de quitação da “Siza” (imposto inicialmente municipal, mas de que o Rei se apropriou), sob pena de nulidade e ineficácia da escritura para as partes e de perda do Ofício para o “Tabelião” (§ 14).

Também foi restringido o exercício da atividade notarial por delegação dos “Senhores de Terras” que tinham tal privilégio, pois era necessário obter a Carta e o Regimento da Chancelaria (§§ 22 e ss.) e era possível a perda do cargo por infração às Ordenações do Rei, da mesma forma que era proibido o exercício da atividade notarial nos domínios da coroa portuguesa por notários que obtiveram delegação estrangeira, ainda que uma das partes fosse castelhana (T. LXXXI).

Em todos esses casos, fica destacada a preocupação com a imposição da origem estatal da delegação ou, no mínimo, da autorização para que fosse continuado o exercício da atividade, que ficava sujeito ao regimento da Chancelaria Real inclusive quanto às hipóteses de perda do ofício, mesmo que o “Senhor de Terras” estivesse autorizado a nomear o Tabelião de Notas.

O Alvará de 23/11/1612 (reproduzido noutro Alvará de 08/08/1763) fazia saber que, vendo o Rei “os grandes danos, faltas e inconvenientes que há de andarem ordinariamente de serventia os mais variados ofícios menores de Justiça deste Reino, concedendo-se serventias por leves causas de comodidades dos proprietários deles; e desejando Eu de prover de remédio em matéria de tanta ponderação, e importância ao serviço de Deus, e Meu, e boa administração da Justiça, a estes, e outros inconvenientes, que disto se seguem: Hei por bem, e Mando, que os proprietários de todos os Ofícios de Justiça, assim de todos os Juízos, e Tribunais (...), sirvam seus ofícios por suas próprias pessoas dentro um mês, que começará do dia da publicação deste Alvará em diante; e não o fazendo dentro do dito termo, me praz que cessem todas as serventias, que de seus Ofícios estiverem dadas, e as sirvam os Oficiais companheiros dos mesmos Ofícios, aonde os houverem, até os proprietários deles estarem desimpedidos para o fazerem; e não havendo companheiros, que por eles possam servir, se haverão os ditos Ofícios por vagos, e Eu mandarei tratar logo da provisão deles, sem que por isso fique a Minha fazenda com obrigação de satisfação alguma aos proprietários”.

Essa preocupação com a qualidade dos Oficiais foi acentuada na época do iluminismo português (inaugurado pela Lei da Boa Razão, de 1750), com a máxima de “dar homens aos ofícios e não ofícios aos homens”.

O Decreto de 03/08/1753 declarou que “em todos e quaisquer ofícios e ministérios, assim marítimos, como terrestres, para que se requer a própria indústria, arte e experiência pessoal, ou sejam liberais, ou mecânicos, não tem lugar o costume do Reino, e com a morte das pessoas, que os servirem em dia pela sua perícia, ficam totalmente vagos, para livremente se proverem nas pessoas mais peritas e experimentadas, que os pretenderem; sem que os filhos dos proprietários tenham direito algum de os pedirem; praticando-se o mesmo nestes ofícios, que se observa nos Contos do Reino e Casa, salvo pelo próprio merecimento, arte, indústria e experiência, com que serão admitidos em concurso”, bem como que as pessoas já “encartadas por semelhante modo, sejam logo mandadas examinar nas Repartições, a que pertencer; e achando-se imperitos e inábeis para pessoalmente exercitarem os ofícios e ministérios, em que estiverem encartados, sejam privados deles, e recolhidas as cartas, que se desnotarão em seus registros; e os ofícios serão providos por concurso nas pessoas mais hábeis, peritas e experimentadas, que os pretenderem, e pessoalmente houverem de exercitar”.

Como visto, pelo menos desde a segunda metade do Século XVIII já existia uma espécie de concurso público para aferir o merecimento da pessoa escolhida para começar ou continuar o exercício de Ofícios da Justiça.

A Carta de Lei de 23/11/1770 foi um libelo contra o Direito Consuetudinário, com base no qual, em “inumeráveis requerimentos”, se postulava a “confirmação de ofícios, de que haviam feito mercê os Senhores Reis Meus Predecessores”, com destaque especial para a “essencial repugnância, que contém o passarem aos filhos, e sucessores inábeis os Ofícios, que da sua natureza requerem indústria própria, e pessoal daqueles, que os devem servir, não para seu particular interesse, mas para a utilidade pública, que fizera necessária a criação deles“.

A seguir, foi denunciada a falsidade do “Direito vulgarmente chamado Consuetudinário”, cuja existência foi atribuída a uma "Consulta estampada entre as de Álvaro Velasco", que “nunca havia na realidade existido”, e apresentada uma série de regras e de assentos mais antigos que a suposta Consulta, que infirmavam a existência de tal costume em Portugal, o qual, portanto, não passaria de uma fraude inclusive contrária às fontes romanas invocadas.

Concluindo uma extensa enumeração dos graves erros ou fraudes cometidos a favor do “costume hereditário”, acusa os “Jesuítas” de terem “introduzido maliciosa, e abusivamente, aqueles inventados Costume, e Direito pelos Pegas, Silvas, Franças e outros semelhantes Advogados a bem dos seus clientudos, que quiseram servir a todo, e a direito, e não sem o sucesso de levarem uma tão nociva corruptela, e pernicioso abuso até o ponto de persuadirem os Senhores Reis destes Reinos obrigados a darem aos filhos os Ofícios, que vagam por morte de seus pais; e até o ponto de estabelecerem uma opinião de Doutores, que ainda nos princípios do Reinado do Senhor Rei D. João V, se achava em tal força, que pela Lei de vinte e quatro de Julho de mil setecentos e treze se dera por assentado o falsíssimo suposto daquele Direito, para se deixarem ao expediente dos Tribunais Régios as mercês aos filhos de Ofícios vacantes pelo falecimento de seus pais”.

Após essas acusações, enunciou os absurdos decorrentes da admissão do falso Costume e dos falsos pretextos criados para sustentar o falso Costume, declarou ser “errôneo o Chamado Costume, e pretendido Direito Consuetudinárioe mandou que fossem “tidos, havidos e reputados, como se nunca houvessem existido, debaixo das penas de perdimento dos lugares aos julgadores, que neles fundarem as duas decisões; e de perpétua inabilidade aos advogados, que os introduzirem nas suas alegações, ou requerimentos; além da nulidade das sentenças contra as partes, a cujo favor se proferirem”.

Acrescentou que a partir de então os Ofícios vagos e que viessem a vagar e fossem pelo Rei providos se entendiam “sempre personalíssimos, e dados somente em vida”, bem como que os ofícios providos em que se “contemplava o erro Consuetudinário, não sejam dados aos filhos por morte dos pais, sem embargo da Lei de 24/07/1713, que hei por revogada nesta parte”.

Surpreendentemente, apesar de tantas acusações e denúncias de falsidades, absurdos, abusos e pretextos, ainda foi considerada possível a nomeação de filhos para os ofícios dos pais, se “presentes as informações do bom serviço, e merecimento dos pais, e as da própria, e pessoal idoneidade dos filhos, que pretenderem preferir no provimento”, “somente no caso de Eu ter certa informação de que neles concorrem as qualidades necessárias para os prover, com sossego de Minha Real consciência”.

Também foi admitida a possibilidade de conceder ofícios por “uma, ou duas vidas” e foi esclarecido que a preferência pelos filhos também seria respeitada quando houve compra de ofícios com autorização real, se os oficiais servissem nesses ofícios “como devem”, e “sendo hábeis os filhos, que tiverem, se Me consultará o provimento deles, com o justo motivo da boa fé, com que houverem feito as compras, na consideração de que era atendível o referido Direito chamado Consuetudinário, que nunca existiu”.

Como visto, o próprio Rei, depois de afirmar categoricamente a prevalência do mérito para que um Ofício fosse validamente ocupado, ainda admitiu ser possível a preferência pelo filho do Oficial falecido, a mercê por mais de uma vida (ou seja, transmissível à geração seguinte) e até mesmo o respeito à boa-fé de quem comprou o ofício acreditando na hereditariedade.

Ou seja, houve uma gritante negação do antecedente, pois a contundente afirmação do mérito como critério necessário e a falsidade do inventado Costume não foram suficientes para eliminar a hereditariedade e nem a propriedade que tivessem como origem uma "mercê Real".

Conclusão

À guisa de conclusão, parcial, como necesário neste trecho de um trabalho maior, podemos afirmar que a propriedade de Ofícios da Fazenda e da Justiça, em geral, não era um problema que fosse exclusivo do Brasil, nem de Portugal e nem da Península Ibérica.

Na verdade, o problema maior nem era a "propriedade" do Ofício pelo Oficial, ou por sua família, mas a pulverização do "Poder de Mero e Misto Império", que preservou relações de clientela e de "apadrinhamento" muito semelhantes às vassalagens de menor nível, de modo que havia múltiplos interesses particulares em causa, até mesmo quando a "delegação" era feita pelo Rei.

De fato, independente de quem fosse o delegante (o Rei ou algum Senhor de Terras), haveria um interesse econômico na cobrança pela renovação das "Cartas de Ofício", que eram precárias, pelo prazo de três anos, ainda que houvesse a expectativa de renovação desse prazo indefinidamente, e até hereditariamente ou a quem fosse indicado pelo Oficial ou seus sucessores, numa compra e venda que às vezes era explícita mas em outras vezes era subentendida (pela renúncia do Ofício "em favor" de alguma outra pessoa, que presuntivamente havia pago ou prometido pagar ao renunciante).

Esse clientelismo, ou apadrinhamento, por mais que garantisse renda, prestígio e destaque social ao Oficial e à sua família, era uma relação de dependência que enriquecia muito mais quem delegava o Ofício do que a quem o Ofício era delegado (vide a situação relatadas sobre os Magistrados Provedores, que perdiam o primeiro ano de seu salário com as várias taxas cobradas pelo mandato de três anos).

Mais adiante, após um período de elogiável republicanização, será possível verificar o ressurgimento dessas práticas abusivas e patrimonialistas no Brasil dos séculos XX e XXI.