Cartórios na Constituição Cidadã e a Jurisprudência Republicana

Quarta parte do estudo sobre Concursos Públicos em Cartórios ou Serviços Notariais e de Registro, a partir da Constituição Federal de 1988, com exigência de provas e títulos tanto para o ingresso por Provimento quanto para a Remoção.

Guilherme da Rocha Zambrano

Introdução

Esta quarta parte do estudo sobre o Concurso Público em Cartórios parte da regra do art. 236, § 3º, da Constituição Federal de 1988.

Entretanto, não prescinde da pesquisa anterior, que examina a evolução de um modelo eminentemente patrimonialista, no Antigo Regime, a um modelo que pelo menos teoricamente era repulicano, no Império Constitucional, mas que retrocedeu ao modelo patrimonialista depois que caiu a primeira república, notadamente a partir da Constituição autoritária de 1937, num neo-patrimonialismo que foi progressivamente agravado até a Constituição Federal de 1988.

A partir desse cenário, será examinada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e as iniciativas do Conselho Nacional de Justiça, enquanto órgãos de cúpula do Poder Judiciário, para que a regra constitucional fosse fielmente cumprida.

Mais adiante, serão examinados alguns subterfúgios que foram tentados para preservar ou restabelecer o patrimonialismo que tanto prejudica os Serviços Notariais e de Registro, com amplo e preocupante destaque para a desinformação.

Conforme demonstrado até aqui, o caminho em direção ao modelo republicano para a delegação dos Serviços Notariais e de Registro foi árduo e marcado por avanços e retrocessos, além de prováveis divergências entre a teoria ou o discurso e a prática.

Nos últimos momentos desse neo-patrimonialismo, inclusive, várias "concessões" foram criadas em favor de "destinatários certos e conhecidos", com promoções disfarçadas de remoção e até o (re)aproveitamento de candidatos que ficaram fora da lista de classificados em concursos "vencidos", que foram renovados ou prorrogados.

Esse neo-patrimonialismo, certamente, encontrou terreno fértil para avançar em decorrência do lobby praticado pelos "destinatários certos e conhecidos" daquelas normas, tanto quanto pela receptividade e benevolência dos "padrinhos" desses beneficiários, no Poder Público.

Exigência de Concurso Público na Constituição Cidadã

O art. 236 da Constituição Federal de 1988 determina: “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”.

Por sua vez, o § 3º determina que: “O ingresso na atividade notarial e de registro depende de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga, sem abertura de concurso de provimento ou de remoção, por mais de seis meses”.

Apesar da clareza e amplitude das regras, propositalmente difíceis de contornar, não foram raras as tentativas de reeditar os lamentáveis “trens da alegria” que só se intensificaram conforme as várias tentativas de republicanização dos Cartórios se sucederam.

Para bem compreender a conjuntura em que foi declarada a vacância de muitos milhares de cartórios no Brasil em decorrência da “investidura” em desacordo com a exigência de Concurso Público de Provas e Títulos, tanto no Ingresso por Provimento quanto no Ingresso por Remoção, é imperativo o exame dos precedentes invocados nos “Considerandos” que justificam a Resolução n.º 80 do CNJ: "CONSIDERANDO os sucessivos precedentes monocráticos e colegiados do C. Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a atual ordem constitucional estabelece que a investidura na titularidade de unidade do serviço, cuja vacância tenha ocorrido após a promulgação da Constituição Federal de 1988, depende da realização de concurso público para fins específicos de delegação, inexistindo direito adquirido ao que dispunha o artigo 208 da Constituição Federal de 1967, na redação da EC 22/1982, quando a vaga ocorreu já na vigência da Constituição Federal de 1988 (RE 182641, 378347 e 566314, MS 27118 e 27104, Agravos de Instrumento 516427 e 743906, ADI 417-4, 363-1 e ADI/MC 4140-1, dentre outros)".

A análise dos precedentes que justificaram a Resolução n.º 80 do CNJ é fundamental para a compreensão do cenário em que foi tomada uma tão radical medida: a declaração de vacância de muitos milhares de cartórios em todo o Brasil, que já vinha sendo feita pontualmente em diversos procedimentos administrativos e judiciais também mencionados nos "Considerandos" da referida resolução.

A Jurisprudência Republicana

O primeiro precedente invocado na Resolução n.º 80 do CNJ é o Recurso Extraordinário n.º 182.641: "Cartório de notas. Depende da realização de concurso público de provas e títulos a investidura na titularidade de Serventia cuja vaga tenha ocorrido após a promulgação da Constituição de 1988 (art. 236, par. 3.) não se configurando direito adquirido ao provimento, por parte de quem haja preenchido, como substituto, o tempo de serviço contemplado no art. 208, acrescentado, a Carta de 1967, pela Emenda n. 22, de 1982. (RE 182.641, Relator(a): OCTAVIO GALLOTTI, Primeira Turma, julgado em 22-08-1995, DJ 15-03-1996 PP-07215 EMENT VOL-01820-04 PP-00839)".

O exame do inteiro teor desse acórdão revela que o Recorrente havia impetrado Mandado de Segurança contra ato praticado pelo Secretário da Justiça e da Cidadania de São Paulo e pelo Desembargador Presidente da Comissão de Concursos das Serventias do Foro Extrajudicial, com o objetivo de ser efetivado no cargo de Oficial Titular do 3º Cartório de Notas de Guarulhos.

Disse que havia sido nomeado em 10/07/1978 para Oficial Maior daquele Cartório e que a partir de 31/01/1979 passou a exercer a função de substituto inúmeras vezes. Em 22/01/1991 se tornou o Interino da serventia, em virtude da vacância do aludido cartório, e requereu efetivação no cargo de titular, com base no art. 208 da CF/1969, que assegurava aos substitutos a efetivação desde que contassem cinco anos de exercício até 31/12/1983.

O pedido foi indeferido porque a vacância aconteceu na vigência da Constituição Federal de 1988, que não previu o benefício da efetivação, mas o recorrente argumentou que possuía o direito adquirido à efetivação, pois já tinha preenchido todos os requisitos do referido art. 208 e só restava a expectativa da vacância que ocorreu sob a égide da Constituição Federal de 1988, que não desnaturaria o seu direito adquirido.

O Mandado de Segurança foi denegado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo e o Recurso Ordinário teve provimento negado pelo Superior Tribunal de Justiça, pois o impetrante tinha “mera expectativa de direito à efetivação”, já que quando houve a vacância era outro o ordenamento constitucional, que exigia o concurso público para as serventias e só resguardou os direitos adquiridos (arts. 31 e 32 do ADCT, que tratam do foro judicial e de serventias oficializadas).

O Ministro Octávio Gallotti, no julgamento do Recurso Extraordinário, afirmou que o direito é adquirido quando todos os fatos idôneos à sua produção sejam cumpridos na vigência de certa Lei, para que tenha passado a integrar, definitivamente, o patrimônio do seu titular, bem como que não bastam simples expectativas de aquisição de um direito fundadas na norma vigente e ainda não concretizadas.

Em seguida, invocou os julgamentos do Plenário, que em pelo menos duas oportunidades já havia desautorizado a validade de disposições transitórias de constituições estaduais com essa finalidade de proteger supostos direitos adquiridos, como é o caso do art. 33 do ADCT do Estado do Espírito Santo (ADI 417, Relator Ministro Paulo Brossard) e do art. 16, § 3º, do ADCT do Rio de Janeiro (ADI 552, Relator Ministro Sydney Sanches) e não conheceu do Recurso Extraordinário, já que não violada a Constituição, em julgamento unânime.

No Recurso Extraordinário n.º 378.347, o Relator Ministro Cezar Peluso negou seguimento ao recurso porque a decisão recorrida estava de acordo com a jurisprudência supramencionada. O recorrente invocou o art. 19 do ADCT, que garantiu estabilidade aos servidores públicos civis que não foram admitidos por concurso público e que tivessem mais de 5 anos de exercício em 05 de outubro de 1988.

No Recurso Extraordinário n.º 566.314, a Ministra Cármen Lúcia tampouco conheceu do Recurso Extraordinário porque a decisão recorrida estava de acordo com a jurisprudência do STF, afirmada e reafirmada em vários precedentes, e a decisão monocrática foi depois confirmada em Agravo Regimental com a seguinte ementa: "AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. SUBSTITUTO DO TITULAR DE SERVENTIA EXTRAJUDICIAL. VACÂNCIA APÓS A VIGÊNCIA DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988: INEXISTÊNCIA DE DIREITO ADQUIRIDO A SER EFETIVADO NO CARGO DE TITULAR. PRECEDENTES. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal assentou que o substituto do titular de serventia extrajudicial não tem direito adquirido a ser efetivado no cargo de titular na hipótese de ter ocorrido a vacância após a vigência da Constituição da República de 1998, que exige a realização de concurso público para o ingresso na atividade notarial e de registro. (RE 566314 AgR, Relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Primeira Turma, julgado em 08-02-2011, DJe-042 DIVULG 02-03-2011 PUBLIC 03-03-2011 EMENT VOL-02475-02 PP-00366)".

No Mandado de Segurança n.º 27.118, o Ministro Eros Grau indeferiu o pedido de liminar contra a decisão do Conselho Nacional de Justiça com base na jurisprudência pacífica do STF. O Impetrante argumentou ter feito concurso de escrevente juramentado, que exercia suas funções desde 1970 e que havia exercido a titularidade mais de uma dezena de vezes, razão pela qual teria sido efetivado como titular em 2002, por força do art. 208 da Constituição Federal de 1967. O processo foi depois extinto sem resolução do mérito, por falta de interesse processual.

O Mandado de Segurança n.º 27.104, também relatado pelo Ministro Eros Grau, também teve origem no Paraná e examinou os casos de Oficiais Substitutas efetivadas entre 1999 e 2002, com fundamento na regra do art. 208 da Constituição Federal de 1967, que invocaram o prazo decadencial de 5 anos para a revisão dos atos da Administração Pública, mas a ordem pretendida também foi denegada. No julgamento do Agravo Regimental, o acórdão foi assim ementado: "SEGUNDO AGRAVO REGIMENTAL EM MANDADO DE SEGURANÇA. SERVENTIA EXTRAJUDICIAL. INGRESSO. SUBSTITUTO EFETIVADO COMO TITULAR DE SERVENTIA APÓS A PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE. DIREITO ADQUIRIDO. INEXISTÊNCIA. CONCURSO PÚBLICO. EXIGÊNCIA. ARTIGO 236, § 3º, DA CRFB/88. NORMA AUTOAPLICÁVEL. DECADÊNCIA PREVISTA NO ARTIGO 54 DA LEI 9.784/1999. INAPLICABILIDADE. OFENSA DIRETA À CARTA MAGNA. INTIMAÇÃO DOS AGRAVANTES. AUSÊNCIA DE NULIDADE. COMPETÊNCIA DO CNJ PARA DESCONSTITUIÇÃO DOS ATOS DE DELEGAÇÃO DE SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. (MS 26888 AgR-segundo, Relator(a): LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado em 05-08-2014, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-161 DIVULG 20-08-2014 PUBLIC 21-08-2014)".

Na fundamentação desse acórdão consta expressamente que “a efetivação na titularidade dos cartórios por outros meios é inaceitável dos pontos de vista constitucional e moral”, assim como que houve “flagrante desrespeito à força normativa da Constituição”, “sendo nesse sentido que deve ser combatida a previsão de que o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contido no art. 54 da Lei nº 9.784/99, quando se tratar ato manifestamente inconstitucional.

Como visto, o STF entendeu que não há decadência quando houver manifesta contrariedade à Constituição.

No Agravo de Instrumento n.º 516.427, o Relator, Ministro Gilmar Mendes, considerou que não cabia dar seguimento ao Agravo e afastou a aplicação da estabilidade prevista pelo art. 19 do ADCTnão se aplica aos serventuários de cartórios, na medida em que as atividades de cartório são exercidas em regime de direito privado, em virtude de delegação do poder público, sendo, pois, inviável o aproveitamento de determinados institutos estatutários”.

No Agravo de Instrumento n.º 743.906, a Relatora Ministra Cármen Lúcia também negou seguimento ao Agravo interposto contra acórdão do Tribunal de Justiça de Goiás, numa ação civil pública, em que se discutia a anulação do ato administrativo que nomeou, sem concurso público, um Oficial de Registro de Imóveis e Tabelião, em 09/02/1998.

O Agravante sustentava que, “como o substituto exerce a atividade notarial e de registro, e o art. 236, § 3º, da CF/88, exige concurso somente para o ingresso nessa atividade, não exige o reingresso, já que o substituto já está ingressado nela”, logo “não exige o concurso para o substituto se tornar titular com a vaga do cargo, nos termos do art. 208 da CE/67'”, mas a Relatora reafirmou a jurisprudência pacífica do STF.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 417, relatada pelo Ministro Maurício Corrêa, a decisão foi assim ementada: "AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTS. 33 E 34 DO ADCT DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO. SERVIÇOS NOTARIAIS E DE REGISTRO. DIREITO À ESTATIZAÇÃO. TITULARIDADE ASSEGURADA AOS ATUAIS SUBSTITUTOS, DESDE QUE CONTEM CINCO ANOS DE EXERCÍCIO NESSA CONDIÇÃO E NA MESMA SERVENTIA, NA DATA DA PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. VULNERAÇÃO DO DISPOSTO NO ART. 236, "CAPUT", § 3º DA CF, E NO ART. 32 DO ADCT-CF/88. 1. Ofende o preceito do § 3º do art. 236 da Constituição Federal o disposto no art. 33 da Constituição do Estado do Espírito Santo, que assegura aos substitutos o direito de ascender à titularidade dos serviços notariais e de registro, independentemente de concurso público de provas e títulos, desde que contem cinco anos de exercício nessa condição e na mesma serventia, na data da promulgação da Carta Federal. 2. Art. 34 da Constituição do Estado do Espírito Santo. Estatização dos Cartórios de Notas e Registro Civil. Faculdade conferida aos atuais titulares. Contrariedade ao art. 236, "caput" da Carta Federal que prescreve serem os serviços notariais e de registro exercidos em caráter privado. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 417, Relator(a): MAURÍCIO CORRÊA, Tribunal Pleno, julgado em 05-03-1998, DJ 08-05-1998 PP-00001 EMENT VOL-01909-01 PP-00001)".

A ação foi proposta pelo Procurador-Geral da República contra a regra do art. 33 do ADCT da Constituição do Espírito Santo, que assegurava a titularidade de serviços notariais e de registro aos substitutos com cinco anos de exercício nessa condição e na mesma serventia.

A Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo alegou que a regra tinha em vista a observância do direito adquirido nos termos do art. 208 da Constituição Federal de 1967.

A defesa do ato impugnado, pela Advocacia-Geral da União, argumentou que o ingresso seria diferente da efetivação de substituto, de modo que não haveria contrariedade à regra do art. 236, § 3º, da Constituição Federal de 1988.

O Ministro Maurício Corrêa destacou que a matéria não era nova, já havia sido enfrentada em reiteradas decisões (ADI 126-RO, ADI 690-GO, ADI 552-RJ e RE 197.248), sempre no sentido da inconstitucionalidade da investidura sem concurso público de provas e títulos, e reafirmou esse entendimento, julgando procedente a ação direta de inconstitucionalidade.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 363-SC, relatada pelo Ministro Sydney Sanches, foi assim ementada: "Direito Constitucional. Serventias judiciais e extrajudiciais. Concurso público: artigos 37, II, e 236, par. 3., da Constituição Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade do art. 14 do A.D.C.T. da Constituição do Estado de Santa Catarina, de 5.10.1989, que diz: "Fica assegurada aos substitutos das serventias, na vacancia, a efetivação no cargo de titular, desde que, investidos na forma da lei, estejam em efetivo exercício, pelo prazo de tres anos, na mesma serventia, na data da promulgação da Constituição. 1. É inconstitucional esse dispositivo por violar o princípio que exige concurso público de provas ou de provas e titulos, para a investidura em cargo público, como e o caso do Titular de serventias judiciais (art. 37, II, da C.F.), e também para o ingresso na atividade notarial e de registro (art. 236, par. 3.). 2. Precedentes do S.T.F. 3. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente. (ADI 363, Relator(a): SYDNEY SANCHES, Tribunal Pleno, julgado em 15-02-1996, DJ 03-05-1996 PP-13897 EMENT VOL-01826-01 PP-00025)".

O art. 14 do ADCT da Constituição do Estado de Santa Catarina assegurava a efetivação, como titular, do substituto de serventia que tivesse três anos de exercício na data da promulgação da Constituição Federal de 1988.

O Relator invocou o precedente da ADI 126-RO, relatada pelo Ministro Octavio Gallotti, em que foi declarada a inconstitucionalidade da regra do art. 266 da Constituição de Rondônia, que pretendia efetivar e tornar titulares aqueles que já estavam exercendo a função quando instalada a Assembleia Nacional Constituinte.

Também invocou o precedente da ADI 552-RJ, relatado pelo próprio Ministro Sydney Sanches, em que foi declarada a inconstitucionalidade da regra do art. 16, § 3º, da Constituição Estadual do Rio de Janeiro, que tornava efetivo o substituto que tivesse ingressado na atividade há mais de cinco anos até a data de promulgação da Constituição Federal de 1988, assim como a ADI 690-GO, que tinha declarado inconstitucional da regra do art. 22 do ADCT da Constituição do Estado de Goiás, que que tinha assegurado a efetivação dos substitutos sem concurso público de provas e títulos, desde que se submetessem a prova específica de conhecimento das funções.

Assim, pelas mesmas razões, reputou inconstitucional a regra impugnada, que foi acolhida em julgamento unânime.

Na ADI 4.140, relatada pela Ministra Ellen Gracie, a ANOREG (Associação dos Notários e Registradores) impugnou algumas normas que reputou inconstitucionais das Resoluções 02/2008 e 04//2008 do Conselho Superior da Magistratura de Goiás que, com o pretexto de reorganizar os serviços, havia criado serventias até então inexistentes, sem que fosse aprovada Lei em sentido formal, pelo Poder Legislativo e de iniciativa do Poder Judiciário, assim como instituído regras para o concurso público unificado: "AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. RESOLUÇÕES 2, DE 2.6.2008, e 4, de 17.9.2008, DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA DO ESTADO DE GOIÁS. REORGANIZAÇÃO ADMINISTRATIVA DE CARTÓRIOS EXTRAJUDICIAIS, PREVIAMENTE CRIADOS POR LEI ESTADUAL, MEDIANTE ACUMULAÇÃO E DESACUMULAÇÃO DE SEUS SERVIÇOS. ESTABELECIMENTO DE REGRAS GERAIS E BEM DEFINIDAS, ATÉ ENTÃO INEXISTENTES, PARA A REALIZAÇÃO, NO ESTADO DE GOIÁS, DE CONCURSOS UNIFICADOS DE PROVIMENTO E REMOÇÃO NA ATIVIDADE NOTARIAL E DE REGISTRO. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ART. 236, CAPUT E § 1º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, E AOS PRINCÍPIOS DA CONFORMIDADE FUNCIONAL, DA RESERVA LEGAL, DA LEGALIDADE E DA SEGURANÇA JURÍDICA. PROCEDÊNCIA PARCIAL DO PEDIDO FORMULADO NA INICIAL. 1. É constitucional o ato normativo do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás que estabelece regras gerais e bem definidas para a promoção de concursos púbicos unificados de provimento e remoção de serventias vagas naquela unidade da Federação. Também não há vício de inconstitucionalidade na decisão de realizar concurso público, quando reconhecida a vacância de centenas de serventias extrajudiciais, muitas delas ocupadas, já há muitos anos, por respondentes interinos, em direta e inaceitável afronta ao disposto no art. 236, § 3º, da Constituição Federal. Declaração de constitucionalidade da Resolução 4, de 17.9.2008, do Conselho Superior da Magistratura do Estado de Goiás. 2. Os serviços auxiliares dos tribunais e dos juízos de direito que lhes são vinculados, organizados privativamente por aqueles (arts. 96, I, b, e 99, caput, da Constituição Federal), são formados, exclusivamente, pelo conjunto de unidades e atividades de apoio que viabilizam a realização de suas finalidades institucionais. As serventias judiciais e extrajudiciais não compõem, portanto, os serviços auxiliares ou administrativos dos tribunais. Precedentes: RE 42.998, rel. Min. Nelson Hungria, publicado em 17.8.1960; e ADI 865-MC, rel. Min. Celso de Mello, DJ de 8.4.1994. 3. A matéria relativa à ordenação das serventias extrajudiciais e dos serviços por elas desempenhados está inserida na seara da organização judiciária, para a qual se exige, nos termos dos arts. 96, II, d, e 125, § 1º, da Constituição Federal, a edição de lei formal de iniciativa privativa dos Tribunais de Justiça. Precedentes: ADI 1.935, rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 4.10.2002; ADI 2.350, rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 30.4.2004; e ADI 3.773, rel. Min. Menezes Direito, DJe de 4.9.2009. 4. A despeito da manutenção do número absoluto de cartórios existentes nas comarcas envolvidas, todos previamente criados por lei estadual, a recombinação de serviços notariais e de registro levada a efeito pela Resolução 2/2008, do Conselho Superior da Magistratura do Estado de Goiás, importou não só em novas e excessivas acumulações, como também na multiplicação de determinados serviços extrajudiciais e no inequívoco surgimento de serventias até então inexistentes. 5. A substancial modificação da organização judiciária do Estado de Goiás sem a respectiva edição da legislação estadual pertinente violou o disposto no art. 96, II, d, da Constituição Federal. Declaração de inconstitucionalidade da íntegra da Resolução 2/2008, do Conselho Superior da Magistratura do Estado de Goiás. Modulação dos efeitos da decisão, nos termos do art. 27 da Lei 9.868/99, para a preservação da validade jurídica de todos os atos notariais e de registro praticados pelas serventias extrajudiciais que tiveram suas atribuições eventualmente modificadas durante a vigência do ato normativo ora examinado. 6. O reconhecimento da inconstitucionalidade da referida Resolução 2/2008 em nada interfere na validade e, por conseguinte, no regular prosseguimento das etapas finais do concurso público unificado em andamento, promovido, em obediência ao disposto no art. 236, § 3º, da Carta Magna, para o provimento da titularidade de mais de trezentas serventias notariais e de registro declaradas vagas no território do Estado de Goiás. 7. Ação direta de inconstitucionalidade cujo pedido se julga, por unanimidade, procedente em parte. (ADI 4140, Relator(a): ELLEN GRACIE, Tribunal Pleno, julgado em 29-06-2011, DJe-180 DIVULG 19-09-2011 PUBLIC 20-09-2011 EMENT VOL-02590-01 PP-00105 RTJ VOL-00222-01 PP-00116)".

No referido processo, a Advocacia-Geral da União, que tinha a incumbência de defender o ato impugnado, sustentou que a mera acumulação ou desacumulação de serventias extrajudiciais poderia ser feita por Resolução do Poder Judiciário, por não representar a criação de serventias que estaria sujeita à reserva legal, nos termos do art. 96 da Constituição Federal, e destacou que não havia ofensa à regra de organização judiciária por Lei de iniciativa do Tribunal de Justiça.

A Procuradoria-Geral da República, por sua vez, argumentou que as normas impugnadas não eram inconstitucionais, dentre outros motivos, por não criarem cargo público e porque a sua validade encontraria respaldo no art. 96, I, “b”, da Constituição Federal, de que “serviços notariais e de registro seriam auxiliares da Justiça e sua organização seria encargo dos Tribunais”.

O voto da Relatora, Ministra Ellen Gracie, enalteceu a decisão unânime do plenário do STF em relação à ausência de plausibilidade da alegação de inconstitucionalidade da Resolução n.º 04 de 2008, que estabeleceu regras gerais, até então inexistentes, aos concursos públicos unificados para provimento e remoção na atividade notarial e de registro, conforme havia sido determinado pelo Conselho Nacional de Justiça no Pedido de Providências n.º 861, em que foi determinada a vacância de mais de trezentas serventias ocupadas por interinos não concursados.

O aspecto mais importante desse precedente é a definição sobre a natureza dos Serviços Notariais e de Registro, sobre se seriam meros serviços auxiliares dos tribunais (art. 96, I, “b”, da CF) ou matéria ligada à organização e divisão judiciária (arts. 96, II, “d”, e ‘’125, § 1º, da CF).

O pretório excelso definiu, naquela oportunidade, que a autonomia dos Tribunais justifica a organização interna dos serviços judiciários, consubstanciada nas unidades e nas atividades de apoio que viabilizam a realização de suas atividades institucionais, mas que também foi conferida aos Tribunais a competência privativa para propor à Assembleia Legislativa a criação e a extinção de cargos e a remuneração de serviços auxiliares do Judiciário, mas, de maneira apartada, em relação aos Serviços Notariais e de Registro, a Constituição atribuiu ao Judiciário o dever de fiscalização da atividade (art. 236, § 1º), e previu a regulamentação, por lei federal, das normas gerais para fixação de emolumentos relativos aos atos praticados pelos Serviços Notariais e de Registro (art. 236, § 2º).

Foi invocado o precedente da década de 1960, na qual o plenário do Supremo Tribunal Federal já havia declarado, no Recurso Extraordinário n.º 42.998, relatado pelo Ministro Nelson Hungria, a constitucionalidade formal de uma Lei do Estado do Ceará que havia desmembrado atribuições que eram exercidas por outra serventia pré-existente, mas que não teve iniciativa no Poder Judiciário, com a premissa de que “as serventias de justiça não são serviços auxiliares dos Tribunais Judiciários”.

Também foi invocada a ADI 865, relatada pelo Ministro Celso de Mello, em que se debateu o desmembramento de escrivanias que exerciam funções tanto judiciais como extrajudiciais, e na qual se argumentou que o projeto encaminhado pelo Tribunal havia sofrido emendas que criaram despesas não previstas originalmente, mas o Relator, em seu voto-condutor, havia asseverado que as serventias “não compõem serviços administrativos do próprio Tribunal” e que sobre essa matéria só incidia a reserva de iniciativa.

Da mesma forma, no julgamento da ADI 1.935, relatada pelo Ministro Carlos Velloso, foi declarada a constitucionalidade da Lei do Estado de Rondônia que, originária de projeto iniciado pelo Tribunal de Justiça, criou dois ofícios de protesto em Porto Velho, e foi rejeitada a tese de que a reserva de iniciativa seria do Poder Executivo, por sua competência privativa para a criação de funções públicas (art. 61, § 1º, II, “a”, da Constituição Federal).

Nessa mesma linha, foi invocada a ADI 3.773, relatada pelo Ministro Menezes Direito, em que foi declarada a inconstitucionalidade formal da Lei do Estado de São Paulo, da iniciativa do Governador do Estado, que versava sobre organização básica, competência territorial, criação, alteração e extinção de serventias extrajudiciais.

Assim, o voto-condutor estabelece que a ordenação e as atribuições desempenhadas por serventias extrajudiciais é matéria de organização e divisão judiciárias, que exige Lei em sentido formal e iniciativa privativa dos Tribunais de Justiça, nos termos do art. 96, II, “d”, e art. 125, § 1º, da Constituição Federal, ao encontro do entendimento do plenário do STF na ADI 2.350, relatada pelo Ministro Maurício Corrêa.

Especificamente em relação ao caso examinado, o acórdão concluiu ter havido substancial alteração da organização judiciária sem a edição da legislação estadual pertinente, em afronta ao art. 96, II, “d”, da Constituição Federal, sem que essa decisão trouxesse qualquer prejuízo para a continuidade do concurso público então em andamento (para o provimento de 335 dentre os 493 serviços então existentes).

Nos votos dos demais ministros podem ser encontrados importantes fundamentos para a harmonização das regras jurídicas incidentes, inclusive as de natureza pretoriana, como é o caso das razões de decidir da Suprema Corte (ubi eadem ratio, ibi idem jus).

O Ministro Luiz Fux afirmou que “o dispositivo constitucional que autoriza o alto governo da magistratura a prover sobre os seus serviços auxiliares diz respeito aos atos administrativos do próprio Poder Judiciário, da própria magistratura”, mas a decisão tem “caráter profilático muito importante, pois evitará inúmeros problemas futuros que surgem exatamente de uma má manipulação desse poder de desmembramento, de delegações etc., os quais temos assistido, lamentavelmente com a má interpretação desses atos praticados”.

A Ministra Cármen Lúcia afirmou que “que serventia não é um serviço privado, um serviço particular, e que há 22 anos o constituinte brasileiro decidiu que serão providos os cargos por concurso público”, “ninguém é dono de serventia e, por isso, a reorganização não importa em nada, em alguém se arvorar em ser o proprietário”, “não há direito adquirido a espaço público”.

O Ministro Ricardo Lewandowski acrescentou que “não pode ser uma lei de iniciativa do Executivo e muito menos do próprio Poder Legislativo, mas uma iniciativa conjugada, ou seja, a vontade do Poder Judiciário conjugada com a vontade do Poder Legislativo, o que minimiza eventuais problemas que poderiam surgir de uma lei emanada exclusivamente do Executivo, exclusivamente do Legislativo, sobretudo tendo em conta - como é sabido - o grande poder de pressão que têm hoje os cartórios no Brasil e as suas organizações representativas”.

O Ministro Gilmar Mendes aduziu, com maestria, que “nós estamos a lidar com um tema que reclama solução há mais ou menos quinhentos anos”, “quando se encerrar esse capítulo do concurso em cartórios, estaremos a superar uma herança colonial trágica”, “apontava inclusive os desvios que levam a um quadro, às vezes, de metástase institucional, no âmbito do próprio Judiciário, com essas substituições que, sem critério, acabam envolvendo o próprio Judiciário em práticas pouco saudáveis”, “dimensão do potencial de contaminação que se tem nesse tipo de matéria”, “o tipo de designação que se faz sem nenhum critério”, “são substituições que se eternizam, exatamente para que não se façam os concursos públicos, e o provisório se torna permanente” - mais adiantem o Ministro ainda destacou: “determinados cartórios de registro de imóveis em algumas das nossas cidades, não sabemos sequer calcular a renda mensal em cada uma dessas serventias e, a partir daí, então, há o abuso de poder que se conhece”; “até nessa perspectiva teria de haver um tipo de critério para que essas entidades não se tornassem mais poderosas do que o próprio Estado”, “às vezes, em determinados setores do Judiciário, em determinados Estados da Federação, muito provavelmente algumas dessas unidades se tornam mais fortes do que o próprio Judiiário, carente muitas vezes de recursos”, “não é por acaso que a tributação que hoje alimenta os cofres dos tribunais, a partir daquele critério de taxas de fiscalização, incide fortemente sobre essas serventias”, “que os concursos sejam realizados, que os aprovados sejam providos nos cargos que estão abertos, para que nós consigamos virar essa página que vai nos colocar noutro padrão civilizatório”, pois a “expressão ‘cartório’ precisa ganhar um outro significado”, diferente do “atraso, quando necessariamente não deveria ser assim.

O Ministro Marco Aurélio destacou “a necessidade de atuarem os representante do povo, a Assembleia, editando a lei, admitindo o lobby no sentido não nefasto, o lobby no sentido salutar que, a meu ver, deve merecer a excomunhão maior quando se faz presente, nesse campo, considerados os tribunais”, assim como necessário afastar a “interinidade definitiva; adiante, aduziu que “quem aglutina extingue; quem desacumula cria”, “aí se dá, sob o ângulo dos interesses em jogo, às vezes até interesses não agasalháveis, toda sorte de resultados”.

O Ministro Cezar Peluso concluiu o magistral julgamento da seguinte forma: “não (há) cargos no sentido estrito do termo”, mas “instituto que corresponde àquilo que (...) é definido como órgão”, “centros de competência instituídos para o desempenho de funções públicas que devem ser exercidas por um ou mais agentes”, que "o fato de não existir cargo não descaracteriza a existência de função" e que "se o exercício é delegado, pela próprio Constituição, a particulares entendidos como tais, eles não se transformam em servidores públicos stricto sensu, embora sejam considerados servidores públicos lato sensu, para vários efeitos legais", "se trata de órgãos que, por velhíssima tradição, sempre foram inseridos dentro da organização judiciária, isto é, dentro do conjunto de órgãos submetidos ao controle e à fiscalização dos Tribunais, tal como ainda hoje são pela Constituição, evidentemente qualquer criação, modificação, extinção de órgãos que estão integrados na organização e divisão judiciárias", que "só por Lei formal em sentido estrito podem ser operadas".

Como visto, além de todas as importantíssimas reflexões contidas em cada voto, fica claro que, embora tenha sido preservada a inserção da matéria relativa à criação dos Serviços Notariais e de Registro no âmbito da divisão e organização judiciária (art. 96, II, "d", da Constituição Federal), ela não se confunde com a autonomia dos Tribunais para organizar, sem acréscimo de despesas, os seus próprios serviços auxiliares (art. 96, I, "b", da Constituição Federal), como efeito da autonomia do Judiciário e da simetria com o art. 84, VI, da Constituição Federal, que permite a um Regulamento sem força de Lei (como a Resolução de um Tribunal) a mera organização da administração pública, inclusive a extinção de funções e cargos vagos, desde que sem aumento de despesas.

Em suma: a antiga tradição de incluir os Serviços Notariais e de Registro no âmbito da organização e divisão judiciária não os converte em serviços auxiliares do Judiciário.

Tais eram a situação da jurisprudência e o cenário normativo vigentes em 2009, quando a Resolução n.º 80 do Conselho Nacional de Justiça criou uma solução definitiva e abrangante para o problema do patrimonialismo nos cartórios.

A decadência administrativa e as exceções à Resolução n.º 80 do CNJ

O art. 4º, parágrafo único, da Resolução n.º 80 do CNJ criou três exceções à declaração de vacância feita no art. 1º, consistentes nos casos das "unidades dos serviços de notas e registro, cujos notários e oficiais de registro: a) tenham sido legalmente nomeados, segundo o regime vigente até antes da Constituição de 1988, assim como está prescrito no artigo 47 da Lei Federal 8.935, de 18 de novembro de 1994, cuja norma deferiu a esses titulares, regularmente investidos sob as regras do regime anterior, a delegação constitucional prevista no art. 2º dessa mesma lei; b) eram substitutos e foram efetivados, como titulares, com base artigo 208 da Constituição Federal de 1967 (na redação da EC 22/1982). Nesses casos, tanto o período de cinco anos de substituição, devidamente comprovado, como a vacância da antiga unidade, deverão ter ocorrido até a promulgação da Constituição Federal de 05 de outubro de 1988; c) foram aprovados em concurso de títulos para remoção concluídos, com a publicação da relação dos aprovados, desde a vigência da Lei n. 10.506, de 09 de julho de 2002, que deu nova redação ao artigo 16 da Lei n. 8.935/1994, até a publicação desta Resolução em sessão plenária pública, ressalvando-se eventual modulação temporal em sentido diverso quando do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 14 pelo C. Supremo Tribunal Federal".

As razões apresentadas para essas exceções, entretanto, são profundamente problemáticas.

A primeira exceção, da letra "a", afirma que o art. 47 da Lei Federal 8.935/1994 teria deferido a delegação aos titulares "legalmente nomeados, segundo o regime vigente até antes da Constituição de 1988", mas o que o art. 47 determina é apenas a observância da regra "tempus regit actum", a irretroatividade de leis supervenientes, e não a convalidação de ilegalidades.

Nesse contexto, para que a regra do art. 47 incidisse, seria preciso que a delegação do serviço notarial ou de registro tivesse ocorrido dentro do cenário normativo vigente na época da delegação, o que de maneira alguma poderia convalidar as delegações feitas sem observância das regras vigentes em cada época.

A rigor, essa exceção era desnecessária e, embora seja possível interpretá-la de modo adequado, ela certamente pode ser usada como subterfúgio para convalidar as situações irregulares que aconteceram na vigência do regime anterior.

Já a segunda exceção é ainda mais problemática, pois supõe que o art. 208 da Constituição de 1967 teria previsto um "trem da alegria" cujo termo final seria a Constituição Federal de 1988, quando na verdade a regra invocada é cristalina no sentido de que o termo final para a efetivação dos "substitutos legalmente investidos" era o dia 31/12/1983: "Fica assegurada aos substitutos das serventias extrajudiciais e do foro judicial, na vacância, a efetivação, no cargo de titular, desde que, investidos na forma da lei, contem ou venham a contar cinco anos de exercício, nessa condição e na mesma serventia, até 31 de dezembro de 1983".

Não há o menor espaço para dúvidas de que somente os substitutos legalmente investidos e que contassem com cinco anos de exercício nessa condição e na mesma serventia, no final de 1983, poderiam ser beneficiados por aquela regra de transição, que, como regra de transição que era, não poderia servir como princípio, nem para analogia e menos ainda além do período final para o regime de transição que ela própria estabeleceu.

Além dessa questão temporal, parece evidente que somente nos Estados em cuja legislação fosse permitida a investidura de substitutos no cargo de titular seria possível invocar essa regra, pois, no período compreendido entre a Emenda Constitucional n.º 07 de 13/04/1977, que proibiu novas "nomeações em caráter efetivo" nos cartórios até a edição de Lei Complementar sobre a "oficialização" (art. 206, § 2º, da Constituição de 1967), e a Emenda Constitucional n.º 22/1982, que restringiu a oficialização "às serventias do foro judicial", não poderia ter sido feita nenhuma nomeação em caráter efetivo, de modo que somente poderiam ter completado o período de cinco anos em 31/12/1983 aqueles substitutos "promovidos" a titulares, de acordo com a legislação estadual então vigente, antes de 13/04/1977.

Entretanto, esse não era o caso do Rio Grande do Sul, em que nunca houve promoção de substituto da titular, pois o máximo que o "ajudante substituto" teve foi o direito potestativo de exigir a realização de concurso público (art. 682, § 4º, da Lei 5.256/1966), que se sobrepunha ao pedido de remoção de um titular (art. 682, § 1º), ou a preferência em favor dos "funcionários do serviço vago", se houvesse empate no concurso público (art. 218 do COJE/1970), mas nesses dois casos seria preciso aprovação em concurso público e a nomeação seria para a titularidade.

Esse tampouco era o caso do Distrito Federal (pelo menos na última versão da legislação aqui examinada, o Decreto 8.527/1946, art. 303), em que havia livre nomeação pelo Presidente da República, para dois terços dos "cargos", ou promoção por merecimento dentre Escrivães de Varas Cíveis, no terço restante, pois nas duas situações a nomeação era para a titularidade, não para substituição, de modo que só havia titular legalmente investido e o substituto só seria "legalmente investido" se fosse nomeado titular.

Ou seja, ao ampliar o termo final da regra transitória, de 31/12/1983 para 05/10/1988, o Conselho Nacional de Justiça parece ter criado mais um "trem da alegria" nos Cartórios, pois essas situações tinham todas as razões para serem consideradas tão inconstitucionais quanto as posteriores à Constituição de 1988, já que seria perfeitamente aplicáveis a elas as máximas de que não há direito adquirido e nem decadência contra a Constituição.

A rigor, embora isso não tenha sido expressamente admitido, o que as exceções criadas no art. 4º, parágrafo único, da Resolução n.º 80/2009 do CNJ fizeram foi reconhecer a decadência e a estabilização das situações inconstitucionais que fossem anteriores à Constituição Federal de 1988, como se estivesse dizendo, mais uma vez, que aquela seria a última vez em que as situações irregulares seriam estabilizadas e protegidas; mas, como será visto, aquela tampouco foi a última vez...

Mais uma vez, pela última vez... mas sempre tem uma próxima vez

A própria Resolução nº 80/2009 do Conselho Nacional de Justiça já anteviu o problema criado pela nova redação do art. 16 da Lei Federal n.º 8.935/1994 ("As vagas serão preenchidas alternadamente, duas terças partes por concurso público de provas e títulos e uma terça parte por meio de remoção, mediante concurso de títulos, não se permitindo que qualquer serventia notarial ou de registro fique vaga, sem abertura de concurso de provimento inicial ou de remoção, por mais de seis meses"), pois, em seu art. 4º, "c", foram excetuados os casos daqueles que: "foram aprovados em concurso de títulos para remoção concluídos, com a publicação da relação dos aprovados, desde a vigência da Lei n. 10.506, de 09 de julho de 2002, que deu nova redação ao artigo 16 da Lei n. 8.935/1994, até a publicação desta Resolução em sessão plenária pública, ressalvando-se eventual modulação temporal em sentido diverso quando do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 14 pelo C. Supremo Tribunal Federal".

Na prática, o Conselho Nacional de Justiça foi extremamente ousado, pois declarou a inconstitucionalidade e suspendeu a execução de uma Lei em pleno vigor, com efeitos erga omnes, sem qualquer manifestação do Supremo Tribunal Federal (art. 102, § 2º, da Constituição Federal) ou do Senado Federal (art. 52, X, da Constituição Federal) sobre aquela Lei.

Longe de criticar a postura do Conselho Naciona de Justiça, esse fato é destacado para demonstrar o quão previsível era a inconstitucionalidade dessa Lei: trata-se de inconstitucionalidade chapada, como dizem alguns Ministros, e é bastante difiícil de concordar com o argumento de que seria necessário proteger a confiança de quem confiou nos atos do Poder Público, já que a jurisprudência era uníssona a respeito da necessidade de Concurso Público de Provas e Títulos.

O que aconteceu foi que, a partir de 09/06/2009, a nova redação do art. 16 da Lei 8.935/1994 deixou de produzir efeitos, "ressalvando-se eventual modulação temporal em sentido diverso quando do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n. 14 pelo C. Supremo Tribunal Federal".

Foi somente quando do julgamento definitivo da Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 14 que a eficácia da referida Lei foi retomada, precariamente, apenas para preservar"a validade das remoções realizadas com base na norma declarada inconstitucional, quando precedidas de concursos públicos exclusivamente de títulos", " cujos editais tenham sido publicados pelos Tribunais entre a publicação da Lei n. 10.506/2002 (em 09.7.2002) e o advento das Resoluções nºs 80/2009 e 81/2009 do CNJ (em 09.6.2009), mesmo que a conclusão final do concurso tenha ocorrido após a edição de tais atos normativos, desde que deles tenham derivado efetivo provimento das vagas, preservando-se, assim, situações fáticas totalmente concretizadas."

Como visto, a última vez nunca é a última vez, pois, até hoje, sempre houve uma próxima vez...

Não se está aqui discutindo a pertinência da modulação de efeitos e menos ainda a legitimidade das razões invocadas pelo Supremo Tribunal Federal, apenas enfatizando a repetição de uma mesma circunstância que não vem de hoje, pois já se repete há séculos, no sentido de que os atuais favorecidos com a exceção às regras vigentes sobre o Concurso Público são os últimos que serão favorecidos e que daqui em diante esse tipo de favorecimento não se repetirá.

Foi assim quando abolida a propriedade dos ofícios da justiça, pela Lei de 11 de Outubro de 1827, sem prejuízo dos ofícios já conferidos a título de propriedade (art. 2º).

No Rio Grande do Sul, a Lei Estadual n.º 10/1895 manteve as disposições do Decreto n.º 9.420/1885 que não foram modificadas por aquela Lei, e todas exigiam o concurso publico (tanto a nova quanto a antiga), mas o art. 200 permitiu que as primeiras nomeações para os ofícios de justiça fossem feitas independente de concurso.

A Lei Estadual n.º 346/1925, em seu art. 219, mais uma vez permitiu que "as primeiras nomeações para os ofícios de justiça que esta lei estabelece ou que foram criados nos termos do art. 122 serão feitas sem dependência de concurso".

O Decreto-Lei n.º 09/1940 aboliu totalmente o concurso público para os ofícios da justiça, cuja investidura passou a ser de livre nomeação do Governador do Estado.

A Lei Estadual n.º 1.008/1950 restabeleceu o Concurso Público de Provas e Títulos (arts. 127), mas a prova consistia em uma dissertação escrita e, se houvesse empate entre candidatos (art. 134), com a nota máxima, por exemplo, o critério de desempate favorecia o ajudante de serventuário de justiça em geral, com mais de cinco anos de efetivo exercício, e, se ainda persistisse o empate, haveria livre escolha pelo Governador do Estado.

Em qualquer um desses casos, o escolhido poderia ser o filho do antigo titular e ainda se tornou possível o aproveitamento dos aprovados em concursos já encerrados, cujos candidatos já eram conhecidos de antemão (num visível atentado à impessoalidade).

Mas o pior de tudo foi a efetivação como titular de quem exercia há mais de um ano qualquer função pública e que tinha mais de cinco anos de serviço público (art. 318), um evidente "trem da alegria".

A Lei Estadual n.º 5.256/1966 permtiu a remoção entre cartórios da mesma classe e entrância, antes da abertura de concurso público (arts. 660 e 683), tornou possível o aproveitamento de candidatos não classificados entre os aprovados em concursos anteriores, para vagas da mesma qualidade e entrância, a critério do Conselho da Magistratura (art. 693, parágrafo único), numa discricionariedade que permitie a escolha de amigos e a rejeição de inimigos.

Os COJEs dos anos de 1970 e 1975 foram "Regulamentos Autônomos" do próprio Tribunal de Justiça, que permitiram a rejeição secreta, imotivada e irrecorrível de candidatos (arts. 209 e 214), eram permitidas remoções, permutas e aproveitamento de candidatos não classificados em concursos anteriores (arts. 243 a 248 do COJE/1970), que chegaram a ser renovados e até revalidados (art. 237 do COJE/1975), e também foi permitida a remoção com ascensão funcional, uma verdadeira promoção (art. 236).

A Emenda Constitucional n.º 22/1982 determinou a efetivação, como titulares, dos "substitutos legalmente investidos", desde que contassem cinco anos de exercício nessa condição até 31/12/1983, embora qualquer "nomeação em caráter efetivo" estivesse "proibida" desde a Emenda Constitucional n.º 7/1977 ("há mais de cinco anos").

O art. 47 da Lei Federal n.º 8.935/1994 atribuiu a delegação constitucional aos notários e registradores legalmente nomeados até 05 de outubro de 1988, mas mesmo as nomeações ilegais parecem ter sido convalidadas.

No Rio Grande do Sul, o art. 27 da Lei Estadual 11.183/1998 criou um outro tipo de “trem da alegria” que foi declarado inconstitucional pelo próprio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (70000031492): o “aproveitamento” da aprovação em concursos já homologados no momento da entrada em vigor da Lei para o “preenchimento dos serviços que estejam vagos ou que venham a vagar, dando prioridade aos concursos homologados há mais tempo, obedecida a respectiva ordem de classificação, segundo a especialidade e o nível de complexidade do concurso para o qual o candidato foi aprovado” (art. 27).

Já o art. 16 da mesma da Lei Estadual 11.183/1998 estabeleceu uma valoração dos títulos que favorecia desproporcionalmente os candidatos "da área", pois atribuíam maior pontuação à experiência prévia em cartórios (até 30 pontos) do que nas outras profissões jurídicas (até 10 pontos) e estabeleciam o tempo na atividade como critério de desempate (art. 22), o que acabaria favorecendo os filhos e as filhas que foram substitutos nos cartórios de seus pais durante toda a vida (num claro exemplo de nepotismo e tentativa de transmissão hereditária da delegação), em detrimento da experiência em qualquer outra profissão jurídica, de modo que o Supremo Tribunal Federal precisou declarar a inconstitucionalidade da referida Lei na ADI 3.522/RS.

No julgamento que declarou a inconstitucionalidade, com sua argúcia peculiar, o Ministro Joaquim Barbosa destacou se tratar de “norma feita com destinatário certo”, que “fere o princípio da igualdade, mas também o da impessoalidade”, e ainda lembrou que “não devemos nos esquecer de que estamos num domínio em que, durante décadas, essas funções foram exercidas mediante mera designação pelo poder político, e essas pessoas constituem o alvo dessas vagas, os possíveis beneficiários”.

Durante o prolongado debate sobre a modulação de efeitos, o Ministro Marco Aurélio ainda destacou “o resultado prático, pernicioso”, já que “dos trinta primeiros classificados, apenas um seria aproveitado, porque aqueles colocados posteriormente passariam à frente, graças a essa pontuação nitidamente dirigida para a clientela interna”.

Por sua vez, o art. 4º, parágrafo único, da Resolução n.º 80/2009 do CNJ convalidou implicitamente as "situações concretizadas" até a Constituição de 1988.

Finalmente, a decisão proferida na Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 14, pelo Supremo Tribunal Federal, convalidou os concursos de remoção com provas exclusivamente de títulos que tiveram início entre 09/07/2002 e 09/06/2009, ainda que concluídos depois dessa data, embora a absoluta previsibilidade da inconstitucionalidade da referida regra, "preservando-se, assim, situações fáticas totalmente concretizadas."

Conclusão

Como demonstrado, é bastante longa a tradição de excepcionar as regras vigentes, "só mais uma vez", e com isso são reproduzidas as práticas e aspirações patrimonialistas que remontam à Idade Média e ao Antigo Regime, mas que vêm se repetindo com intervalos mais ou menos largos até os dias atuais, que em vários caso podem ter criado hereditariedade de fato, embora nunca de direito.

Infelizmente, entretanto, por maior que seja a boa-vontade daqueles que buscam colocar "panos quentes" para apaziguar os "ânimos" de quem se diz "prejudicado" e supreendido em sua "boa-fé" e "expectativas legítimas", a verdade é que esta ainda não foi a última vez em que esse tipo de pedido é feito (vide a ADI 6.958-DF) e, enquanto a acomodação desse tipo de interesse não cessar, as tentativas de ressuscitar o patrimonialismo nunca vão acabar.

Concluindo esta que deve ser a penúltima parte deste estudo sobre o Concurso Público em Cartórios, resta pouco a acrescentar sobre todos os excertos já destacados de tantas, maiores e melhores autoridades no assunto.

O único receio que resta e aflige quem acredita na República é que o Supremo Tribunal Federal tenha inaugurado uma nova fase de estabilização de fatos consumados contra a lliteralidade da Constituição, no julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 14.

Espera-se, sinceramente, que tenha sido a última vez, mesmo.